Krenak explica como seu povo observa o movimento do céu e a relação dele com a terra, percebendo quando o povo está dissociado dos demais seres. Quando sentem a pressão de que o céu está muito perto da terra, sentem que é o momento de realizarem o ritual de canto e dança, com a finalidade de suspender o céu. Esse ritual é realizado na entrada da primavera.
(Elvira Elisa França, 2020).
Em 2017, 2018 e 2019, propusemos, experimentamos e provocamos no FIDA, novos modos de ser/estar no mundo com residências, oficinas, encontros, espetáculos, bailinhos.
Em 2020, a pandemia de COVID-19 nos impôs um modo não-querido de fazer o festival, ou seja, a presença que faz da Dança sua magistral e potente acionadora de transformações foi abalada e nos reinventamos com uma edição virtual.
Seja corazonando nossas ações presenciais, com verdadeiros bombeamentos de vida para que o pulso dançante permanecesse, seja acordando o corpo, mediado pelas telas, com perguntas vertiginosas como ‘o que precisa acordar em nós?’, nos mantivemos firmes na execução deste festival que é um programa importante de políticas públicas da Prefeitura Municipal de Araraquara/SP.
Em 2021, não há como ignorar a diferença de um ano para o outro. As estatísticas, ainda subnotificadas, de um número inimaginável de lutos sucessivos, nos lançam um desafio ainda maior:
É possível manter a vitalidade?
Queremos, então, lançar a ideia de atos-manifestos-ocupações para nos mantermos alimentados.
A nutrição, sustento e alimentação aqui, são pautadas pelas lutas indígenas pela demarcação das terras; pela ancestralidade de nosso passado-presente-futuro; pelos ‘agoras’ emergenciais do corpo que insiste dançar; pelas políticas de vida que parecem impossíveis e perigosas diante de tanto desmantelamento.
Se a ruína é uma espécie de imposição atual, nós vamos dançar para que o céu não caia.
Como acreditar naquilo a ser sustentado por nós?
Reflexão lançada, vamos compartilhar tudo o que surge daí: propostas em exercício, processos inimagináveis, obras radicais, percursos perigosos, residências nômades.
Nossa dança artivista, política e vital recebendo a primavera no Sul. Assim, nesta primavera de 2021, vamos propor sustentar o céu e dançar desde o Sul, num movimento cósmico e planetário, iluminado pela pequena grande Araraquara, irradiado desde o seu buraco de araras, engendrado por sua luz solar.
Como curadora, desde 2017, proponho “Dançar para sustentar o céu” como inspiração. Inspirar, expirar. Nosso ar precisa se renovar, em todos os sentidos. Com esse aprendizado, forjado por Davi Kopenawa e seu rico relato das cosmologias Yanomami, e por Ailton Krenak com o sonhar, suspender o céu e cuidar da terra, “Dançar para sustentar o céu” é uma possibilidade de experimentarmos a conexão entre a realidade cósmica e a vida cotidiana.
Então, é preciso dançar e cantar para suspendê-lo [o céu], para que as mudanças referentes à saúde da Terra e de todos os seres aconteçam nessa passagem. Quando fazemos o taru andé, esse ritual, é a comunhão com a teia da vida que nos dá potência
(KRENAK,2020: p. 46).
Sonhar é uma prática que pode ser entendida como regime cultural, em que, de manhã cedo, as pessoas contam o sonho que tiveram. Não como uma atividade pública, mas de caráter íntimo. Você não conta o sonho em uma praça, mas para as pessoas com quem tem uma relação. O que sugere também que o sonho é um lugar de veiculação de afetos. […] Quando o sonho termina de ser contado, quem o escuta já pode pegar suas ferramentas e sair para as atividades do dia: o pescador pode ir pescar, o caçador pode ir caçar e quem não tem nada a fazer pode se recolher. Não há nenhum véu que o separa do cotidiano e o sonho emerge com maravilhosa clareza.
(KRENAK, 2020: p. 36-7).
Em relação ao Edital Municipal 2021, a ideia do hibridismo nas artes é convergente com as noções de produções transartísticas, de diluição de fronteiras, de diálogos interartes e com o FIDA 2021 em sua versão híbrida, com retomada da presencialidade com responsabilidade.
Priorizando os enfoques no corpo, em realizações que borram as fronteiras da dança com o teatro, a performance, a música, a literatura, a fotografia, o audiovisual e as novas mídias, o presente edital busca fomentar pesquisas prático-teóricas que dialoguem com epistemologias transdisciplinares e transartísticas. Um sentido dilatado de Encontro abre portas à exploração de diversidades poéticas, políticas e discursivas cujo tremor reverbera e desestabiliza concepções sedimentadas de arte e de existência.
O ato de assumir o híbrido como proposição é também reconhecer-se enquanto mistura e em oposição à noção de pureza e essência, e binarismos do tipo: homem/mulher, margem/centro, colonizador/colonizado. É valorizar o entre, o trajeto, a transição, o trânsito e a troca. É despertar novos olhares, tanto do público quanto dos artistas participantes, diante de novos horizontes de criação, de fruição e de existência.
A noção transartística, presente no Edital Municipal 2021, tem sua origem na Crítica Genética. Segundo Cecília Almeida Salles, “a crítica genética, que vinha se dedicando ao estudo dos manuscritos literários, já trazia consigo, desde seu surgimento, a possibilidade de explorar um campo mais extenso, que nos levaria a poder discutir o processo criador em outras manifestações artísticas”. Já Daniel Ferrer, vai falar de uma “vocação transartística capaz de “promover uma reflexão da crítica genética que atravesse as fronteiras dos gêneros e das artes” e vê que esse é o caminho para os estudos genéticos sobreviverem no século XXI.”